quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Drummond e os poemas barrocos

      
   
 No prefácio da obra "Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho" de Rodrigo Bretas, Silviano Santiago nos brinda com uma história curiosa sobre o movimento modernista e o barroco.
          A troca de cartas entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade cria uma articulação interessante nesse momento. Macunaíma estava sendo 'gestado'. Ao comunicar a Drummond sobre a obra, Mário de Andrade mostra interesse por conhecer Aleijadinho.
         O que se segue é uma descoberta do barroco mineiro, com inúmeras viagens para Ouro Preto e Mariana. E encontros com o poeta simbolista Alphonsus de Guimarães em Mariana. 
         O que queremos ressaltar aqui, no entanto, são os poemas de Drummond dedicados a algumas cidades barrocas como Sabará e Ouro Preto. 
          Nesse destacamos o seu diálogo com os profetas.


"Assim confabulam os Profetas, em reunião fantástica, batida pelos ares de Minas"


O colóquio das estátuas

    Sobre o vale profundo, onde flui o rio Maranhão, sobre os campos de Congonhas, sobre a fita da estrada de ferro, na paz das minas exauridas, conversam entre si os Profetas.
    Aí onde os pôs a mão genial de Antônio Francisco, em perfeita comunhão com o adro, o santuário, a paisagem toda - magníficos, terríveis, graves, eternos - eles falam de coisas do mundo que, na linguagem das Esculturas, se vão transformando em símbolos.
    As barbas barrocas de uns, panejadas pela vento que corre os gerais, lembram serpentes vingativas, a se enovelarem; no rosto glabro de outros, a sabedoria ganha nova majestade; e os doze, em assembleia meditativa, robustos não obstante a fragilidade do saponito em que se moldaram e que os devotos vão cobiçosamente lanhando- os doze consideram o estado dos negócios do homem, a turbação crescente das almas, e reprovam, e advertem.
   -Uma brasa foi colada a meus lábios por um serafim – diz Isaías, ao pé da grade. E Jeremias, cavado de angústias, desola-se:
     -Pois eu choro a derrota da Judéia, e a ruína de Jerusalém…
    Esse choro, através dos séculos, vem escorrer nos dias de hoje, e não cessa nem mesmo quando Israel volta a reunir seus membros esparsos, pois só outra Jerusalém, a celeste, não se corrompe nem se arruína.
    Em sua intemporalidade, são sempre atuais os profetas. Em qualquer tempo, em qualquer situação da história, há que recolher-lhes a lição.
    -Eu explico à Judéia o mal que trarão à terra a lagarta, o gafanhoto, o bruco e a alforra – é Joel quem fala. Ao passo que Habacuc, braço esquerdo levantado, investe contra os tiranos e os dissolutos:
    -A ti Babilônio, te acuso, e a ti, ó tirano caldeu…

    Em visão apocalíptica, Ezequiel descreve “os quatro animais no meio das chamas e as horríveis rodas, e o trono etéreo”. Ozéias dá uma lição de doçura, mandando que se receba a mulher adúltera, e dela se hajam novos filhos. Mas Nahum, o pessimista, não crê na reconversão de valores caducos:
    -Toda a Assíria deve ser destruída- digo eu.

    Contudo, há esperança, mesmo para os que forem atirados à jaula dos leões- pondera Daniel (e em numerosas partes do mundo eles continuam a ser atirados; apenas os leões se disfarçam): esperança mesmo para os que, por três noites, habitaram o ventre de uma baleia- é a experiência de Jonas, a caminho de Nínive.
    Assim confabulam os profetas, numa reunião fantástica, batida pelos ares de Minas.

    Onde mais poderíamos conceber reunião igual, senão em terra mineira, que é o paradoxo mesmo, tão mística que transforma em alfaias e púlpitos e genuflexórios a febre grosseira do diamante, do ouro e das pedras de cor? No seio de uma gente que está ilhada entre cones de hematita, e contudo mantém com o universo uma larga e filosófica intercomunicação, preocupando-se, como nenhuma outra, com as dores do mundo, no desejo de interpretá-las e leni-las? Povo pastoril e sábio, amante de virtudes simples, de misericórdia, de liberdade – povo sempre contra os tiranos, e levando o sentimento do bom e do justo a uma espécie de loucura organizada, explosiva e contagiosa, como revelam suas revoluções liberais?

    São mineiros esses Profetas. Mineiros na patética e concentrada postura que os armou o mineiro Aleijadinho: na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; no julgar friamente e no curar com bálsamos; no pessimismo; na iluminação íntima; mineiros, sim, de cento e sessenta anos atrás e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos.



Santuário visto da Romaria






Referência


SUPLEMENTO. Edição Especial. Belo Horizonte, Novembro /2014.

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