quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Drummond e os poemas barrocos

    Nas páginas finais onde investigou as "Ideias filosóficas no barroco mineiro" Joel Neves deixa um registro valioso sobre o adro da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. 
   As análises estéticas sobre os esquemas de organização do jogo das estátuas dos Profetas são imprescindíveis para aquele que se interessar em aprofundar as leituras sobre essa arte.
    Diz: 
               "O movimento gestual do corpo de cada profeta evoca-nos a problemática do ser auto-centrado e do ser ex-cêntrico.
             Cada estátua joga consigo mesma. Seu ser "parece" se alojar neste afastar-se de seu centro, e, no entanto, se auto centra. As linhas verticalizantes caem sempre para as oblíquas, à semelhança de uma linha-eixo de fuga para uma longitude inconcreta, não visível. 
           Este jogo de centramento e de fuga ao mesmo tempo evoca uma quase ex-sistência. O ser da imagem existe e não existe na estrutura de pedra. Parece que a estátua terminou um gesto, um movimento, ou tende a iniciar um passo, e foi surpreendida neste preciso instante do término ou do início do movimento."

  Essa descrição do gestual representa e apresenta de modo singular o barroco, uma arte em movimento. 
  E se em sua investigação ele buscava os argumentos para tomar o barroco como campo gnosiológico, e nesse sentido, o jogo da linguagem artística como estrutura de antecipação reveladora do ser, Neves parece ter alcançado seu intento.

    Mas o poeta tem outro olhar. Nem melhor, nem inferior ou discordante, apenas outro olhar. 
    E Drummond nos convida  a ascese.


Voo sobre as igrejas

Vamos até à Matriz de Antônio Dias
Onde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança, o Aleijadinho.

Vamos subindo em procissão a lenta ladeira.
Padres e anjos, santos e bispos nos acompanham
e tornam mais rica, tornam mais grave a romaria de assombração.
Mas já não há fantasmas no dia claro,
tudo é tão simples,
tudo tão nu,
as cores e cheiros do presente são tão fortes e tão urgentes
que nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do século 18.

Vamos subindo, vamos deixando a terra lá embaixo.
Nesta subida só serafins, só querubins fogem conosco,
de róseas faces, de nádegas róseas e rechonchudas,
empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autêntico.

Este mulato de gênio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados,
as nossas luxúrias todas,
e esse tropel de desejos,
essa ânsia de ir para o céu
e de pecar mais na terra;
este mulato de gênio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve também escorbuto
e morreu sem consolação.

Vamos subindo nessa viagem, vamos deixando
na torre mais alta o sino que tange, o som que se perde,
devotas de luto que batem joelhos, o sacristão que limpa os altares,
os mortos que pensam, sós, em silêncio, nas catacumbas e sacristias,
São Jorge com seu ginete,
o deus coberto de chagas, a virgem cortada de espadas,
e os passos da paixão, que jazem inertes na solidão.

Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Mariana, Sabará, Congonhas, 
era uma vez muitas cidades
               e o Aleijadinho era uma vez. 


"Vamos subindo nessa viagem, vamos deixando na torre mais alta o sino que tange..."





Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião: 23 livros de poesia- volume 6ª edição- Rio  de Janeiro: Best bolso, 2013.

NEVES, Joel, Ideias filosóficas no barroco mineiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1986. 

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